Car: The dream is over
O sonho, se ainda não acabou por completo, reduziu-se e em muito.
Durante décadas o sonho do brasileiro era ter seu fusquinha, seu Fiat, sua Kombi. E ainda, Romiseta, Gordini, Chevette, DKW, Monza… E assim, meses antes de completar 18 anos já tomava todas as providências para tirar a carteira de motorista. Com 18 anos, alguns segundos, minutos, dias. Há 10 anos a constatação nos Departamentos de trânsitos das capitais de Estado que os 18 foram virando 19,20,21,22,23,24 e hoje aproximam-se dos 27 anos. Na média, não mais de tirar carta aos 18 e sim, e quase, ou, a partir, dos 27…
No início da década passada, e feito todos os planos, baseados na retrospectiva dos últimos anos e décadas, é que o Brasil alcançaria em 2019/2020, a produção e venda de sete milhões de unidades. Essa previsão foi realizada precisamente no mês de dezembro de 2013, mas, a cada dezembro seguinte foi revista para baixo, e chegamos ao final de 2020 produzindo, segundo a ANFAVEA – Associação Nacional de Fabricante de Veículos – 2.014 milhões de veículos – automóveis, comerciais leves, caminhões e ônibus – ou seja, menos de 1/3 do que estimado em 2011…
E desde o início desta década, antes e depois da pandemia, novos hábitos vão se consolidando, o que joga mais para baixo ainda as perspectivas da indústria automobilística brasileira. Desde uma atitude mais racional e objetiva do brasileiro que não sonha mais com o automóvel como acontecia 20/30 anos atrás – Automóvel ocupava a primeiro lugar disparado no sonho de consumo dos jovens, e hoje já não figura nas 10 primeiras posições – os que sonham em meio a pesadelos tiram carta com 27 e mais anos, e no pós-pandemia e com a adesão crescente das empresas ao home office, trabalho a distância, o carro vai despencando na prioridade das famílias…
Ou seja, por razões conjunturais e estruturais o automóvel vai despencando na lista das prioridades e sonhos, e o Brasil, que um dia disse ter um potencial de produção e vendas de sete milhões de veículos ano, quem sabe agora, nem mesmo 2 milhões seja esse potencial. Por essa razão, e outras mais, e não obstante a falta de componentes eletrônicos, os pátios das montadoras que sobreviveram estão abarrotados, e muitas concedendo antecipação de férias… 12 das 17 fábricas decidiram interromper a produção por um prazo ainda não definido, e de olho numa eventual melhora nas vendas… Que nunca mais irá ocorrer de forma consistente…
Fim de um ciclo. Os automóveis, como sonho de compra e uso dos brasileiros segue despencando na lista dos sonhos e prioridades. E quando excepcionalmente uma pessoa ou família sentirem necessidade, muito provavelmente não comprarão. Alugarão por um final de semana ou uma semana, no máximo 10 dias, ou se por alguma necessidade com alguma eventualidade, recorrerão ao CAAS – Car As A Service – carro por assinatura…
Isso posto, Car, The Dream Is Over. Hoje, as indústrias de automóveis analógicas e do tempo da gasolina, encontram-se na situação descrita pelo poeta e compositor Paulo Leminski, “Acordei e me olhei no espelho ainda a tempo de ver meu sonho virar pesadelo”.
Em verdade, verdade mesmo, temos uma única e derradeira exceção. Aquela que dá sustentação à regra. O ser humano mais criativo da face da terra, em termos de business, Elon Musk, e sua Tesla. Que fechou o ano de 2021 com um valor de mercado de US$800 bilhões – mais que todas as demais montadoras “analógicas” – da geração gasolina – somadas: Volks, Toyota, Honda, GM, Fiat, Chrysler, Mercedes, Nissan, Peugeot, Renault e Kia.
Tesla que vai completar 20 anos no dia 1º de julho próximo, e que promete produzir e vender a partir de 2030, 20 milhões de carros por ano… Da geração dos elétricos…
Automóveis é como se tudo fosse começar de novo
Depois de mais de 100 anos a indústria e o negócio de automóveis reinventam-se. Quase 100%. Radicalmente.
Do lado dos clientes, uma nova visão e entendimento do que é e para que serve o automóvel. Do lado dos fabricantes, e respeitando essa nova leitura e entendimento dos clientes, uma reinvenção do negócio. Em todos os sentidos e direções, e ainda acrescidas das manifestações da sociedade em busca de um mundo mais limpo e saudável.
Assim, e gradativamente, vamos deixando de comprar, e passando a assinar um carro por dias, semanas, meses, ano; assim muitos de nós diante das novas alternativas tipo Uber desistiram de vez de ter carros. Assim, outros têm carro mais só para finais de semana e viagens. Em alguns bairros das grandes cidades, as garagens que sempre faltaram, sobram!
E assim, os chamados carros autônomos, mesmo seguindo nas pranchetas e experiências e testes, a caminho e no aguardo da universalização do 5G. Assim, o etanol, muito lentamente, vai e seguirá perdendo terreno para os movidos a energia elétrica. E enquanto isso não acontece, nos 10 a 20 anos da transição, toda uma nova geração intermediária dos chamados carros híbridos: gasolina e ou etanol e mais eletricidade…
Pablo Di Si, todo poderoso da Volks, no Brasil, e em entrevista à Daniele Madureira e Eduardo Sodré da Folha vai iluminando e esclarecendo as próximas manifestações:
‒ Maior mudança ‒ “A maior dentre todas as mudanças aconteceu com o consumidor. Tornou-se muito mais digital. Cada vez mais irá menos a uma concessionária, e cada vez mais efetivará sua compra pelo computador. Hoje, nós, a Volks, temos uma única loja no digital, a VW e-store conectada e em parceria com toda a rede de concessionárias. Toda a compra é feita pela loja online. Mais ainda, lançamos a DDX – Digital Dealer Experience – o cliente permanece em sua casa e recebe a visita de um vendedor com tablete e óculos 3D. ‘Visita’ todos os modelos, escolhe e fecha a compra…”.
‒ Mais mudanças ‒ Carro por assinatura. Diz ele, “demoramos mais finalmente conseguimos chegar a um modelo onde a conta fecha para todos: montadora, concessionária, clientes. E o cliente resolve tudo online, carro, modelo, cor, tempo de contrato, cadastro, envio de documentos, recebe o contrato por e-mail, faz e usa a assinatura digital. E escolhe onde quer retirar o carro… Em princípio, e depois de alguns anos, a assinatura digital deverá responder entre 20% a 30% do comércio de carros…”.
‒ Encarecimento dos carros ‒ “Os carros, em decorrência da prática e da legislação, vêm se tornando cada vez mais seguros, com mais tecnologia, e isso tem um custo. Por outro lado, uma queda substancial no volume de vendas, o que obriga a um realinhamento dos custos. Por outro lado, a hierarquia dos fatores que determinam a escolha pelos consumidores brasileiros mudou, e isso impactou no preço. Hoje, e pela ordem, os brasileiros valorizam em primeiro lugar na escolha do carro o design, depois a conectividade, e, em terceiro lugar, a segurança. Antes o preço estava na primeira colocação…”.
‒ Carro elétrico ‒ Antes do elétrico, o elétrico híbrido, que também roda com etanol. Não existe outra alternativa para um país continental como o Brasil. As pessoas definitivamente não vão investir num carro elétrico, que, por falta de estrutura, só roda e é confiável nas grandes cidades…
É isso, amigos. Assim, segue a reinvenção do business dos automóveis e que passa por jovens tirando carta mais velhos, pessoas não querendo mais comprar, e sim, assinar; montadoras fazendo a travessia do combustível fóssil para o elétrico, longa e demorada travessia; montadoras passando a criar mecanismos para apoiar suas concessionárias nas vendas pelo digital; E todos, correndo atrás, para a longa jornada na “eletrificação” dos até então e prosaicos, postos de gasolina…
Mudou tudo, ponto, e não se fala mais nisso. A menos que seja pra jogar conversa fora, ou para a hora da saudade, se é que alguém em pouco tempo ainda terá saudade dos tempos das kombis e fusquinhas.
Angu de caroço, ou, dupla transição
A expressão angu de caroço tem dois entendimentos. O primeiro original, e que era um pedaço de carne que no tempo da escravidão costumava-se esconder para consumo posterior, ou reservar-se para uma pessoa querida e ausente. Daí decorreu um segundo sentido que, e como era difícil de se encontrar, acabou virando sinônimo de desafio, dificuldade, e até mesmo rolo e confusão.
Hoje a indústria automobilística mundial vive um duplo angu de caroço. Horizontal e vertical. No vertical, a troca quase que compulsória mediante a quase totalidade de manifestação das pessoas contra os combustíveis poluentes, e em defesa do carro elétrico. Neste momento, todas as montadoras, em todo o mundo, cuidam da migração para a chamada energia limpa.
E no Horizontal, a migração de uma sociedade de propriedades, para uma sociedade de usos, chegando o CAAS – o “carro” as a service. Quase ninguém mais comprando, fazendo assinatura e pagando por um dia, uma semana, um mês, um ano. E nesse angu de caroço as montadoras se reposicionam.
A primeira consequência dessas duas mudanças radicais é um repensar e o realocar de suas fábricas pelo mundo. E com isso, e nos últimos dois anos, quase 10 fábricas ou fecharam ou mudaram-se do Brasil.
Especificamente no caso da montadora que praticamente iniciou a chamada indústria automobilística em nosso país, a Volkswagen, encontramos ótimas referências das decisões que decorrem, obrigatoriamente, desse duplo angu de caroço.
Falando ao Estadão, e ao jornalista Eduardo Laguna, Pablo Di Si, que comanda a Volks na América Latina, explicou como a empresa vai processando essas duas mudanças:
“Nos próximos dois anos o Brasil vai passar por muitas mudanças de legislação, envolvendo uma série de normas prevendo mais segurança e menos emissões. Assim, alguns modelos que hoje existem deixarão de ser fabricados e no máximo em dois anos teremos uma nova safra de produtos da Volks. Muitos investimentos em desenvolvimento e muito pouco em instalações uma vez que possuímos quatro fábricas em ótimas condições…”.
Carros Elétricos – “Nos próximos cinco anos teremos seis novos veículos, entre carros elétricos, e carros híbridos. Mais adiante, teremos a eletrificação por completo. Em quanto tempo isso vai acontecer quem determinará é a mudança de comportamento dos consumidores. Já em todo o mundo teremos mais de 140 veículos entre híbridos e elétricos.
É isso, amigos. Todas as montadoras correndo para desatar esses dois nós, ou duplo angu de caroço horizontal e vertical.
Da velha, boa e poluidora gasolina para os elétricos. Da compra e propriedade para a posse e uso mediante assinatura. Duas crises específicas do setor, além claro, da maior de todas, a estrutural, da migração do velho para um novo mundo, e que afeta todos os negócios e todas as empresas de todos os portes e setores de atividade…
Negligência e omissão
Quase o nome de um filme… Dentre as marcas mais citadas por péssimas razões no ano passado figura nas primeiras colocações Takata. Isso mesmo, a Takata com seus airbags assassinos.
Airbags esses que foram colocados em 4.352.428 veículos fabricados no Brasil e mais de 100 milhões em todo o mundo. Praticamente todas as principais montadoras eram clientes da Takata e de seus airbags assassinos.
Dentre outras, Honda, Toyota, Nissan, Mitsubishi, Mazda, Subaru, BMW, Ford, GM, Fiat Chrysler, Volks.
Airbags assassinos que em determinadas situações explodem como se fossem granadas e em situações excepcionais podem até mesmo matar as pessoas dentro dos automóveis. No Brasil, o último dado disponível e comprovado falava de 39 casos de explosão, com uma morte e 16 feridos.
Os airbags possuem uma peça de metal chamada de deflagrador e que contém um elemento químico gerador de gás. Essa pecinha é que faz com que o airbag expanda-se imediatamente diante de qualquer acidente.
Em algumas situações de colisão, o deflagrador defeituoso mais que liberar o gás, literalmente explode, rompe a bolsa e lança centenas de estilhaços de metal em alta velocidade contra os ocupantes do carro.
E aí, cada uma das montadoras a seu jeito, e dependendo da qualidade de seus cadastros de clientes, e da relação que mantém com seus clientes, foi convocando para a troca, para o recall.
Mas menos da metade dos proprietários de automóveis em risco atendeu à convocação. E de tempos em tempos, alguma montadora, advertida por seus advogados procura sensibilizar os proprietários para que agendem a substituição e reparo.
No primeiro semestre de 2021, e no desespero, a GM deu início a uma promoção, diante do insucesso de iniciativas anteriores, tentando sensibilizar os proprietários dos 144.272 sedãs Classic, e 91.573 hatchs compactos Celta, que até aquele momento não tinham atendido a convocação, e para fazê-lo o mais rápido possível.
E para tanto ofereceu a todos que atendessem o recall um vale combustível de R$ 500, e ainda concorriam ao sorteio de três carros zero-quilômetro.
O hoje chamado “Affair Takata”, é, de longe, o maior cochilo jamais cometido por qualquer indústria. Todas as montadoras que compraram os airbags da Takata para seus diferentes modelos agiram, no mínimo, com negligência.
E assim, e enquanto um último modelo continuar rodando com os airbags potencialmente assassinos, essas montadoras não dormirão tranquilas.
Como era mais que esperado, a Takata não resistiu o tamanho da lambança, e declarou-se falida, e vendeu o que restou aproveitável de suas máquinas em instalações para a Joyson Safety Systems, uma vez que a marca não valia mais nada.
E um documentário está sendo finalizado neste momento — Ticking Time Bomb – The Truth Behind Takata Airbags ou “Bomba relógio – a verdade por trás dos airbags da Takata”, onde revela-se, assim como aconteceu durante décadas na indústria de cigarros, os executivos da Takata sabiam dos elevadíssimos riscos que seus airbags representavam.
E, mesmo assim, seguiram vendendo… Ou seja, o documentário deveria chamar-se negligência ou omissão. Melhor ainda, crime culposo.
No dia 26 de junho de 2017, a Takata ingressou com pedido de falência. Seus airbags até hoje seguem ferindo gravemente, e até mesmo matando…
Diário de um Consultor de Empresas – 15/07/2022
CARRO ELÉTRICO. Um dos principais temas desta e da próxima década. As luzes de Pablo Di Si (Volks).
Diário de um Consultor de Empresas – 18/11/2021
AUTOMÓVEIS, É COMO SE TUDO FOSSE COMEÇAR DE NOVO
Do carro, do combustível, passando pelas revendas, pelo digital, pela forma de ter acesso, pela definição de prioridades… é como se o carro nunca tivesse existido…
Diário de um Consultor de Empresas – 09/07/2021
ANGU DE CAROÇO, TRANSIÇÃO DUPLA. É o desafio que se impõe a indústria automobilística, e, de certa forma, em diferentes proporções, a todas as demais empresas e cadeias de valor da economia. Sem falar no tsunami tecnológico e na necessidade inadiável, de, todas, se, reinventarem… ontem!